Sim, eu uso óculo - como algures já partilhei por aí.
Disse o médico quando me receitou os óculos: - Já não vês bem ao longe e a vista continua cansada. Eu disse-te, ler de noite só com um candeeiro fraquinho daria nisso. Terás de usar os óculos mesmo, não só para actividades que exigem mais concentração ocular.
Fiquei chateado. Fiquei chateado com o médico pelo tom paternalista, ainda que fosse amigo da família. Acho que precisava de ficar chateado com alguém, de preferência não comigo e saiu ele na rifa. Eu usar óculos? como conseguiria jogar à bola de óculos na cara? Como enfrentar as criaturas mais duras e más que conhecia - os meus amigos e colegas de recreio?
Mas fui crescendo e fui-me adaptando. A tudo. A coisa foi difícil em algumas situações, embaraçosas noutras. Difícil o primeiro dia de escola com os óculos escolhidos pela minha mãe. Eram horríveis, olhando agora, daqueles mesmo de puto. Mas tudo acaba por ter um lado bom, porque nesse dia, quando entrei atrasado na sala de aula - fiz um fita digna de um óscar para não ir à escola - decidi seguir um concelho do meu avó e não trazer desaforo para casa. O que trouxe foi uns arranhões, nódoas negras, umas calças rotas e os óculos partidos. mas nesse dia como nos outros todos nunca ouvi "caixa de óculos" ou "quatro olhinhos".
Embaraçoso quando meti na cabeça que as miúdas não me dariam atenção porque usava óculos. E embaraçoso, porque aqui escrevo isso mesmo. Mas a verdade é que houve alturas em que achei isso mesmo.
Já adulto, em pleno final de faculdade decidi mudar os óculos. Mudei para os que ainda utilizo. Não levei comigo a minha mãe tal como na primeira vez, levei comigo uma amiga. Escolhi uns de massa preta, grossos, mas simultaneamente pepit.Hoje, não me vejo sem eles. São parte de mim. Fazem parte do meu rosto. Não deixa de ser estranho quando, por alguma razão me vejo sem eles - principalmente de manhã. Mas não deixa de ser estranho, algo que não "meu" é parte de mim.
Um mundo onde não ouvissem nada. Terrível, não é?
Imaginem que não ouvem a vossa mãe a chamar-vos no finaldo dia. Não conhecem o som doce da voz da vossa mãe. O som mais terno que foi inventado. Terrível não é?
Imaginem o que é ouvir um jogo de futebol, ser golo no último minuto e não ouvirem os festejos, não partilharem o som da alegria colectiva. Terrível não é?
Imaginem que não ouvem a vossa música preferida, se é que conhecessem o termo música. Terrível não é?
E imaginem que um dia serão vocês mesmos, mães, pais, e nunca ouvirão o vosso filho dizer "mãe", "pai" ,contar-vos o seu dia, as suas glórias. Nunca o ouvirão chorar, cantar, rir. Não é terrível. não existe palavra que descreva. Assim imagino.
Não consigo imaginar um mundo onde não ouvisse nada que não fosse o som dos meus pensamentos. Se som poderia chamar ao que não conhecia. Não me imagino sem sons, melodias, música, vozes, gritos, barulhos. Ruído. Algo que seja, que me ligue ao mundo e aos outros. É difícil imaginar um mundo que não conhecemos nem queremos conhecer. Pois mostremos, por vezes, mais tolerância àqueles que vivem num mundo diferente do nosso.